As Tradições

PALESTRA REALIZADA EM CURITIBA, PARANÁ

Dr. Lais Marques da Silva, ex-Custódio e Presidente da JUNAAB.

Estamos aqui reunidos na cidade de Curitiba, numa das muitas cidades do Estado do Paraná, um dos 26 Estados do Brasil, um grande país entre os muitos países do mundo. Sabemos que os companheiros de A.A. estão unidos mundo a fora e, melhor, temos a sólida esperança de que assim deverão permanecer. Mas essa certeza e essa expectativa que acalmam o espírito nem sempre estiveram presentes nas mentes dos primeiros membros da Irmandade. No início da vida de A.A., houve um crescimento rápido e espantoso no número de grupos e de pacientes em recuperação e esse crescimento, não obstante ser um fato auspicioso, ameaçou fazer em pedaços a instituição que ainda estava sendo consolidada. Ao mesmo tempo, esse crescimento muito acelerado, exponencial, era um fato que chamava a atenção e que merecia uma análise cuidadosa na busca de uma explicação.

Em 1941, com a publicação do trabalho de Jack Alexander no Saturday Evening Post, o número de membros de AA salta de 2.000 para 8.000 e para 96.000, em 1950. Os grupos foram de 500 em 1944 para 3.500, em 1950. Acompanhando esta onda, muitos não alcoólicos dos campos da medicina, da religião e da mídia estavam ficando cada vez mais conscientes do que Alcoólicos Anônimos representavam uma solução para alcoólicos aparentemente sem esperança, e pediam informações sobre o AA. Da mesma forma, uma inundação de cartas chegava aos escritórios.

Para dar uma idéia dos problemas e das dificuldades observadas nos primeiros tempos da vida de A.A., um breve quadro será composto usando apenas as suas linhas mais gerais. Assim, havia o temor das recaídas e dos romances fora do casamento. Afloraram os desejos de poder, fama e dinheiro. Os mais antigos na obra se julgavam donos e consideravam ter direitos adquiridos, e mais, serem portadores de permissão para conduzir a Irmandade. Era necessário conter os dominadores de plantão e as personalidades autoritárias. Havia o medo do aparecimento nos grupos de pessoas esquisitas ou indesejáveis ou mesmo de criminosos. Como os grupos iriam se relacionar entre si? Qual o conceito de grupo? Qual o seu propósito primordial? Deveria o A.A. se envolver com movimentos sociais? Entrar na área educacional? Tornar-se uma instituição reformadora? Outra dificuldade estava em levar a termo os problemas de dinheiro. Com idéias grandiosas, alguns membros julgavam que precisariam de grandes somas. Como resolver o problema da tendência ao profissionalismo? Como lidar com o aparecimento de núcleos internos de governo e com o aparecimento de sanções a serem aplicadas? Infratores deveriam ser expulsos? E o que fazer com a tendência a opinar sobre questões alheias à Irmandade com o conseqüente envolvimento em controvérsias públicas. Como lidar com a divulgação em que se faziam promessas, o que se constituía em propaganda? A busca pelo poder e pelo prestígio sempre ocorria.

Esse quadro, muito resumido, mostra que a Irmandade, no início da sua existência, era como uma balsa de náufragos navegando em mar muito perigoso. Era preciso não balançar e estabilizar a balsa para que todos não ficassem em pânico e não corressem perigos.

Diante dos desafios trazidos pelo intenso crescimento, tanto interno quanto das repercussões externas consequentes das atividades dos grupos, Bill se deu conta de que a nova Irmandade poderia facilmente ser esmagada pelo seu próprio sucesso, a menos que um corpo de princípios norteadores e uma política de relações com o público fosse formulada.

Naqueles tempos, Bill W. se apercebeu da necessidade de estabelecer linhas de procedimento que orientassem as relações internas e externas da Irmandade em face do crescimento de A.A. e da necessidade de manter a unidade; de criar um sistema de proteção para a comunidade recém-criada e de garantir o seu progresso.

Bill W., o co-fundador de A.A., foi capaz de identificar as ameaças potenciais para a existência de Alcoólicos Anônimos: problemas de propriedade, prestígio e poder. Os de propriedade foram afastados evitando-se que A.A. se tornasse proprietário e fazendo com que pudesse se manter, daí a formulação das Tradições Sexta e Sétima.

Foram afastadas as idéias de criação de linhas mestras que fossem chamadas de leis, regulamentos, regras ou qualquer coisa semelhante, pois transmitiriam uma ideia de autoritarismo e trariam conseqüências negativas para a Irmandade. Dessa forma, Bill começou por chamá-las de “Os Doze Pontos Para Garantir a Nossa Sobrevivência Futura”. No entanto, alguns desses pontos já eram tradicionalmente praticados por muitos grupos de A.A. com base nas suas experiências. Daí passarem esses pontos a serem chamados de “Tradições”.

Da experiência acumulada dentro da Irmandade, surgiram as idéias básicas para as Doze Tradições de A.A.. Elas têm a finalidade de oferecer soluções para problemas da vida diária da Irmandade e, ainda, ajudar na comunicação com a comunidade fora de Alcoólicos Anônimos. Nelas encontramos todos os assuntos relacionados com a existência de A.A. e a maneira pela qual a Irmandade poderia continuar atuando dentro da sociedade em geral. As Tradições fornecem as ferramentas necessárias para a sobrevivência de A.A., ensinando as condições para que os alcoólicos sejam membros da Irmandade, a autonomia dos grupos, a unidade de propósitos, a não-aceitação de apoio externo, o anonimato, o profissionalismo, a questão das controvérsias públicas e a auto-suficiência. Todo este conjunto de princípios deu origem às Tradições de A.A..

Não obstante a existência das ameaças de desunião e de colapso que aconteceram neste período de crescimento, a unidade de A.A., a nível mundial, foi forjada graças ao desenvolvimento de princípios calcados em procedimentos existentes em alguns grupos, já então tidos como tradicionais, e nascidos a partir da solução de problemas do cotidiano dessas estruturas e capazes de, sendo observados, mantê-las em unidade. Esses princípios foram estudados e consolidados e, no seu conjunto, se constituem naquilo que, hoje, para o nosso conforto e paz, são chamados de as Doze Tradições de Alcoólicos Anônimos. Esses princípios, cristalizados a partir da experiência, da vida de A.A. nos primeiros tempos, se constituem num instrumento poderoso que permite transpor obstáculos e resolver os problemas do dia a dia da vida da Irmandade. Por meio da observância do segundo legado, permanecemos em unidade.

Insisto em chamar a atenção para esses primeiros tempos porque neles surgiram dificuldades e problemas e, a partir deles, as Tradições. Isso parece muito natural e ficamos tranquilos, mas é preciso lembrar sempre que o não conhecimento desses princípios ou a omissão quanto à sua prática poderá nos levar a severas dificuldades e a enormes turbulências, inconvenientes para o processo de recuperação dos portadores da síndrome da dependência do álcool e que, ademais, poderão conduzir a rupturas de conseqüências imprevisíveis.

Além do mais, o estudo das Tradições encanta pela grande sabedoria existente em cada um dos seus princípios ao mesmo tempo em que espanta os estudiosos pelo fato estranho de neles existir tanta inspiração, tanto discernimento, tanta visão, tanto conhecimento, tanto de humanismo e, ainda, que toda essa riqueza tenha sido encontrada por aqueles que os conceberam. Acontecimentos como esses não são comuns na história da humanidade em que, infelizmente, predomina a insensatez, entendida como a tomada de atitudes contrárias aos seus interesses.

Penso que é também oportuno que nos detenhamos sobre o significado das palavras legado e tradição. Legado é definido como dádiva deixada em testamento e dádiva é definida como donativo, presente, oferta. A palavra legado, portanto, está mais associada a coisas imateriais e, por isso, penso que a sua adoção é mais adequada do que a da palavra herança, com nítida conotação de coisa material e, por isso, ligada ao mundo das coisas e até à possibilidade da existência de conflitos. Fica, desse modo, a idéia de algo imaterial, precioso e enriquecedor do espírito, que é o que se aplica ao uso que fazemos em A.A. da palavra legado. Também é válido se deter sobre o significado da palavra tradição como sendo costume, hábito, uso ou crença, especialmente a que passa de geração em geração. Ou seja, um corpo de hábitos e crenças tidas como sendo de valor por uma cultura particular.

Se, por um lado, as Tradições significam para a Irmandade, como um todo, progresso, proteção e unidade, para os membros de A.A., que as praticam, representam uma linha de crescimento espiritual na medida em que colocam o outro em primeiro lugar e passam a valorizar o bem-estar comum.

Relembramos alguns fatos históricos, de grande importância, que convergiram para o aparecimento das Tradições de A.A. e que irão avivar no nosso espírito a ideia de que precisamos estudar as Tradições com grande dedicação, mantendo a lembrança de que estes princípios salvaram, naqueles tempos, a nossa Irmandade da desintegração. O relato concorrerá para formar a consciência de que o não estudo e a não observância desse legado poderá resultar na perda da unidade, indispensável para que possamos levar adiante a mensagem de A.A. mundo afora.

1ª TRADIÇÃO

“Nosso bem-estar comum deve estar em primeiro lugar, a reabilitação individual depende da unidade de A.A.”

O bem-estar comum é muito valorizado em A.A. e, sem ele, não pode haver o bem-estar pessoal, indispensável à recuperação.

A situação do membro de A.A. é semelhante à de náufragos que estivessem em uma balsa navegando em mar muito perigoso. É preciso não balançar a balsa para não colocar todos em pânico e em perigo. Os víveres devem ser repartidos. É interessante observar que numa situação como esta não há glutões.

De início, havia o temor das recaídas, o que causava pânico, e também o temor dos romances fora do casamento. Outras ameaças vinham do desejo de poder, domínio, fama e dinheiro por parte dos membros da Irmandade. O orgulho, o medo e a raiva já eram importantes inimigos do bem-estar comum.

Por outro lado, a harmonia e o amor fraterno fortaleciam os companheiros de A.A..

2ª TRADIÇÃO

“Somente uma autoridade preside, em última análise, o nosso propósito comum – um Deus amantíssimo, que se manifesta na nossa consciência coletiva. Nossos lideres são apenas servidores de confiança; não têm poderes para governar”.

A consciência do grupo é a única autoridade a conduzir a discussão dos assuntos da Irmandade.

Os mais velhos, muitas vezes, pensam que foram eles, com mais experiência e com a sua orientação e liderança, que levaram uma vida nova para os alcoólicos. Pensam que têm direitos adquiridos e até permissão para conduzir a Irmandade indefinidamente. Pensam também que têm direito de escolher os seus sucessores. Mas os outros membros dos grupos não pensam dessa forma.

A consciência do grupo era quase sempre mais sábia do que a de qualquer dos seus membros separadamente.

Há dois princípios no enunciado da 2ª Tradição:

1. A não existência de uma autoridade humana com poderes para governar. Ou seja, existência de apenas uma autoridade espiritual.

2. A possibilidade de a autoridade espiritual manifestar-se por meio da consciência coletiva.

Bill relata, em janeiro de 47, na Grapevine, que tentou controlar e dirigir o A.A., mas sem resultado. Quando dirigia críticas a grupos ou pessoas, recebia de volta o dobro de críticas e, às vezes, era chamado de ditador. Assim, também a 2ª Tradição, como as demais, resultou de experiências fracassadas. Bill concluiu que somos um grupo de pessoas difíceis de serem comandadas.

Nas reuniões evitamos o ar professoral, como se quiséssemos ensinar a arte de viver. Isso não funciona. Assim, cada um conta apenas a sua história.

Essa rebeldia, embora não possa ser considerada uma virtude, mas o fato é que, dentro dos limites da Irmandade, tem servido para nos proteger dos dominadores de plantão, das personalidades autoritárias que, se tivessem autoridade, agiriam como agentes desagregadores.

A irmandade existe há 67 anos e não tem nem nunca teve uma estrutura de comando. Há apenas diretrizes acompanhadas de cobrança de resultados.

Da mesma forma que os companheiros procuram praticar os Doze Passos, os grupos agem da mesma forma em relação às Tradições. Do mesmo modo que não praticar os Passos leva à tristeza, à depressão, à bebida e à morte, a não observância das Tradições pode levar à desintegração do grupo e tornar problemática a recuperação pessoal dos seus membros.

Sobre a possibilidade de uma autoridade espiritual manifestar-se na consciência coletiva, fica a necessidade de compreender bem o que ela é porque, afinal, é ela que conduz a nossa irmandade e ainda pode manifestar a vontade de Deus.

Um membro de AA pode, ao praticar o 11º Passo, melhorar o seu contacto consciente com Deus para que Ele possa agir por seu intermédio. A prática desse Passo pode preparar cada membro de A.A. para participar da formação da consciência coletiva.

Confiança e fé são as palavras-chave da Segunda Tradição.

3ª TRADIÇÃO

“Para ser membro de AA, o único requisito é o desejo de parar de beber”.

Quando o A.A. passou pela fase de forte crescimento, surgiram dúvidas quanto ao aparecimento de outros tipos de pessoas. Até aquela época, o problema era apenas com bêbados. Não apareceriam criminosos, pessoas esquisitas ou socialmente indesejáveis? Na prática, e ao longo dos anos, todos os tipos de pessoas têm encontrado caminho em A.A.. Nos grupos estão hoje todos os tipos de pessoas sem que problemas tenham ocorrido em decorrência de se terem tornado membros de A.A..

O resultado desses temores foi que, de início, havia grupos com tantas regras a serem observadas para que as pessoas pudessem ser membros da Irmandade que, se tivessem prevalecido, ninguém poderia ingressar em A.A.. Para muitos alcoólicos, o A.A. é a última salvação e como fechar as portas dos grupos para eles? É preciso aceitar o risco de aceitar os alcoólatras. Ninguém em A.A. aceita o papel de juiz, de jurado e, muito menos, de carrasco de um companheiro alcoólico.

Assim, a 3ª Tradição diz: “você é um membro de AA se você o disser. Não importa o que tenha feito ou o que ainda venha a fazer, você é um membro de AA, contanto que você o diga”.

Com o enunciado da Terceira Tradição, foram superadas as regras e condições para o ingresso de alcoólicos nos grupos de A.A..

4ª TRADIÇÃO

“Cada grupo deve ser autônomo, salvo em assuntos que digam respeito a outros grupos ou ao A.A. em seu conjunto”.

A partir dos locais em que os grupos nasceram, eles se irradiaram para outras cidades. E como isso seria feito? Qual o modelo de relacionamento? Como poderiam ser passadas as experiências já vividas? Logo, ficou claro que, para os companheiros que adotavam o exemplo e o modelo, se havia muita coisa boa, a decisão de adotá-las seria deles próprios. Os grupos decidiram que eles mesmos iriam encontrar o modo de resolver os assuntos que lhes eram próprios. Resolveram não aceitaram um governo localizado em New York ou em qualquer outro lugar. Serviço sim, mas governo não.

Desta atitude, resultou a tradição de autonomia de grupo. Essa tradição logo se consolidaria diante da manifestação da vontade dos grupos de incluir o direito de estarem errados.

Na sua forma longa original, a 4ª Tradição diz: “quando duas ou três pessoas estiverem reunidas com o propósito de alcançar a sobriedade, podem chamar a si mesmos de um grupo de A.A. contanto que, como grupo não tenha outra afiliação”. Isso significa que esses três ou quatro poderiam alcançar a sobriedade da forma que quisessem. Poderiam até estar em desacordo com os princípios de A.A. e, mesmo assim, se chamariam de grupo de A.A.. É uma forma dotada de extrema liberdade, mas o fato é que acabariam por adotar alguns princípios de AA para permanecerem sóbrios.

Por outro lado, se encontrassem outros caminhos e pudessem melhorar os métodos usados, eles poderiam ser adotados por outros grupos. Isso era muito importante porque evitava que a Irmandade acabasse por ter princípios rígidos e dogmáticos e que não pudessem ser mudados quando claramente errados.

O A.A. vive de ensaio e erro, mas o importante é não ter outra afiliação, pois isso desfiguraria a Irmandade em situações criadas, como por exemplo, da existência de grupos de católicos de A.A., grupos de protestantes de A.A., grupos comunistas de A.A., etc. O nome de Alcoólicos Anônimos deve ser reservado apenas para a Irmandade de A.A..

Da existência dessa tradição resulta que o A.A. ficou muito diferente do modo em que se vive neste mundo, onde tem que haver lei, força, sanção, penalidade e isso tudo administrado por pessoas autorizadas. Mas o fato é que os membros de A.A. não precisam de nenhuma autoridade humana. O A.A. só tem duas autoridades, uma benigna – Deus – e outra maligna, – a bebida alcoólica. É melhor você fazer a vontade de Deus ou eu o matarei, diz o álcool. Para os membros de A.A. é fazer ou morrer. Há ditadura suficiente, autoridade suficiente, amor suficiente, penalidade suficiente, sem que haja nenhum ser humano manejando o poder.

Os membros de A.A. aceitam os Passos e as Tradições porque desejam aceitar e essa é a prova da presença da Graça e do amor de Deus entre nós.

A autonomia decorrente da Quarta Tradição resulta em autogoverno. O grupo age com autonomia, mas guiado pela consciência coletiva, que leva à liberdade e também à responsabilidade. As ações de um grupo não podem prejudicar outros grupos e o bem-estar comum deve ser sempre observado.

5ª TRADIÇÃO

“Cada grupo é animado de um único propósito primordial, o de transmitir a mensagem ao alcoólico que ainda sofre”.

Aqui fica claro que o foco é executar bem uma só tarefa. Tudo fica simples desta forma. É a ideia central dessa Tradição. Embora o interesse pessoal dos membros de A.A. possa se voltar para assuntos relacionados ao alcoolismo, que pode ser enfocado sob diversos pontos de vista, a Irmandade não pode se desviar do seu propósito primordial.

Há um fato de grande importância que deve ser sempre considerado, que é a facilidade que têm os alcoólicos membros de A.A. em face das suas experiências pessoais relacionadas ao alcoolismo, de se aproximar de outros alcoólicos sofredores.

6ª TRADIÇÃO

“Nenhum grupo de A.A. deverá jamais sancionar, financiar ou emprestar o nome de A.A. a qualquer sociedade parecida ou empreendimento alheio à Irmandade, para que problemas de dinheiro, propriedade e prestígio não nos afastem do nosso objetivo primordial”.

De início, o espaço estava aberto para uma grande expansão em campos do conhecimento humano como educação e pesquisa, mas para isso era preciso dispor de recursos. Pensava-se em construir hospitais próprios, em educar o público por meio de publicações e livros didáticos. Também em reformular leis e entrar no mundo da dependência das drogas em geral e da criminalidade. Grandes ideais, grandes sonhos. Intensa busca da perfeição.

A coisa não funcionou. Os hospitais fracassaram. As coisas terminaram confusas. O A.A. era um projeto educacional? Era espiritual ou médico? Era um movimento de reforma? A ideia de criar e mudar leis resultou em agitações e o risco da entrada no mundo da política.

Os membros de A.A. não poderiam ser tudo e fazer tudo. Dificuldades apareceram ao emprestar o nome de A.A. para empreendimentos de fora. De tudo isso resultaram dificuldades, sérias dificuldades.

Por paradoxal, descobriu-se que quanto mais se preocupava com os seus próprios assuntos, maior influência a Irmandade exercia na sociedade como um todo. O fato é que as idéias e a experiência de A.A. começaram a serem usadas em diversos campos de trabalho e de pesquisa. O desenvolvimento que queriam forçar acabou ocorrendo por iniciativas próprias de membros da sociedade e não do que os alcoólicos pensavam em realizar.

7ª TRADIÇÃO

“Todos os grupos de A.A. deverão ser absolutamente auto-suficientes, rejeitando quaisquer doações de fora”.

Foi preciso também chegar a termos com o problema de dinheiro, que pode fazer muitas coisas boas, mas não existe mal que não possa causar. Depois de muitos tropeços, os membros de AA despertaram para o fato de que não precisavam de muito dinheiro. Sem as idéias grandiosas, não sobraram muitas coisas para pagar.

A Sétima Tradição é muito clara quando diz que todo grupo de A.A. deve se manter, negando-se a receber contribuições de fora. Nesta Tradição, vemos dois princípios fundamentais: a auto-suficiência, sinônimo de independência econômica, e a recusa em receber qualquer doação de pessoa não filiada à Irmandade. As contribuições externas dariam, certamente, o direito aos doadores de se intrometerem nas normas que conduzem a Irmandade. O velho ditado mostra bem esta realidade: “quem paga o músico escolhe a música que vai ser tocada”.

A existência de doações levou os custódios da Junta a analisar com profundidade e prudência o problema da aceitação ou não de doações vindas de fora. Escreveram então uma página memorável na história de A.A.: declararam que, por princípio, o A.A. deveria permanecer sempre pobre e a norma de procedimento deveria ser a de ter os recursos necessários para as despesas razoáveis de funcionamento e mais uma reserva prudente.

Com a autossuficiência, desenvolveu-se o princípio da igualdade entre os membros de A.A.. Tanto os companheiros de maior poder aquisitivo, quanto os mais modestos, do ponto de vista econômico, podem exercer qualquer encargo. E isso porque todos contribuem, de forma anônima, para que os compromissos e as despesas possam ser pagas. Ainda mais, essas contribuições também cobrem os custos relativos à presença de representantes do grupo junto aos órgãos de serviço, independentemente de esses representantes terem ou não condições econômicas para arcar com os custos ligados à atividade que exercem. De outra forma, somente os que tivessem maior poder aquisitivo poderiam arcar com os ônus de movimentação, hospedagem, etc ligadas a muitas atividades desenvolvidas pelo todo da Irmandade. Deste modo, a Irmandade se tornou ainda mais democrática.

Até mesmo estando desempregado, um membro do grupo poderá assumir encargos, pois as suas despesas em serviço serão custeadas pelo dinheiro de todos os membros que generosamente fazem doações. Oferecem com gratidão o seu tempo e também os recursos para que a irmandade possa se manter em ação.

O A.A. não tem dono nem protetores. Ninguém poderia querer assumir individualmente a responsabilidade de manter a Irmandade e de arcar com os custos ligados às atividade de A.A.. Todos os seus membros são igualmente responsáveis e a eles cabe assumir os custos e mostrar que espírito e matéria podem andar juntos oferecendo o suporte financeiro para o desenvolvimento espiritual dos companheiros de A.A.. Somos materialistas quando usamos os nossos recursos materiais egoisticamente, apenas para nós mesmos, mas quanto os usamos em benefício de outros, então o material ajuda o espiritual. Dinheiro e espiritualidade são os fundamentos da Sétima Tradição.

A autossuficiência decorre do desenvolvimento, entre os membros da Irmandade, do senso de responsabilidade que, por sua vez, é o resultado do processo de recuperação que leva à maturidade emocional. Bill W. afirmou que “Felizmente, as despesas de A.A. por pessoa são pequenas. Deixarmos de atendê-las seria fugir a uma responsabilidade que nos beneficia”.

8ª TRADIÇÃO

“Alcoólicos Anônimos deverá manter-se sempre não profissional, embora nossos centros de serviços possam contratar funcionários especializados”.

Isso significa que não haverá terapeutas profissionais na Irmandade. É dar de graça o que de graça se recebeu. Ficam separados, o dinheiro que resulta da atividade profissional, e a espiritualidade. O profissionalismo é válido, mas não dentro da Irmandade. Em todas as vezes que se tentou profissionalizar o 12º Passo, o propósito da Irmandade foi derrotado. Há tarefas a serem realizadas e é possível contratar profissionais para realizá-las, mas quando no tratamento cara a cara de um bêbado, aí a regra é jamais receber.

A experiência de um alcoólico pode ser valiosa para o desempenho de muitas funções, como por exemplo, as ligadas à educação e à terapia e, nestes casos ele pode receber pelo trabalho realizado. É claro que não é válido usar o nome de A.A. com o propósito de obter publicidade ou de arrecadar dinheiro. Também, nestas situações, o anonimato deve ser preservado. Procedendo desta forma, não fica caracterizado o profissionalismo, o “ganhar dinheiro usando o A.A.”.

É preciso ter em mente que o A.A. não é uma sociedade fechada em que experiências e conhecimentos ficam em segredo, mas, se por um lado nunca deve ser paga a atividade de levar a mensagem, por outro, as pessoas que prestam serviços aos alcoólicos merecem ser pagas.

Ocorre que, muitas vezes, os profissionais de saúde que atuam em centros de recuperação são também membros de A.A.. Neste caso, a atividade é profissional. Os especialistas estão sujeitos ao cumprimento de horários e estão colocados dentro de uma hierarquia funcional e inseridos numa equipe de trabalho, além de ter que apresentar qualificações que implicam na feitura de cursos de especialização. De um modo inteiramente diverso, no grupo, as atividades são totalmente voluntárias. Também diferentemente, os pacientes nos centros de recuperação são submetidos a um rígido esquema disciplinar, que é compulsório, sendo que esses pacientes podem até ser desligados do tratamento em certas circunstâncias.

Em 1946, Bill W escreveu na Grapevine que nada impedia que um membro de AA fosse trabalhar como terapeuta remunerado, se tivesse qualificação para tal, desde que evitasse publicamente declarar-se filiado ao A.A. e que a clínica em que trabalhassem também evitasse declarações desse tipo para o público em geral, ficando claro que o A.A. não mantêm clínicas, não faz convênios, não avaliza nem condena qualquer tipo de tratamento. O problema não está no trabalho realizado, mas no respeito ao anonimato, como definido nas Décima-Primeira e Décima-Segunda Tradições.

Num artigo publicado na Grapevine em 1993, está escrito o seguinte: “… nós somos tipicamente alcoólicos nesta controvérsia, que tem seu lado irônico. Durante anos, tentamos despertar o interesse de médicos e hospitais para o Programa de Doze Passos, sem conseguir nada. No momento em que alguns deles começam a nos escutar e passam a se utilizar os Passos em seu trabalho, ficamos irados e passamos a agir como se Deus nos tivesse dado direitos exclusivos sobre eles. Na realidade, os Doze Passos não são propriedade de A.A.. Eles podem ser livremente utilizados por qualquer pessoa que queira usá-los, inclusive médicos e conselheiros em alcoolismo”.

A questão pode ser tornada mais clara entendendo que, antes de tudo, devemos deixar a orientação profissional e tudo o mais que é externo à Irmandade no lugar em que devem ficar: fora de A.A..

Os membros de A.A. colaboram com os profissionais que se mostram receptivos à mensagem da Irmandade, desde que continuem fiéis aos seus princípios de anonimato e de autonomia.

9ª TRADIÇÃO

“A.A. jamais deverá organizar-se como tal; podemos, porém, criar juntas ou comitês de serviço diretamente responsáveis perante aqueles a quem prestam serviços”.

O A.A., como um todo, jamais deverá ser organizado e isso significa que o A.A. nunca poderá ter uma direção organizada no governo.

Todas as formas de associação humana possuem regulamentos para os seus integrantes que impõem disciplina a seus membros. Exigem obediência a normas e regulamentos. A alguns de seus integrantes são delegados poderes para impor obediência, punir ou expulsar infratores. Tem-se aí um governo administrado por seres humanos. A.A. se constitui numa exceção a essa regra, pois não se adapta a padrões de governo. A Conferência, a Junta de Serviços Gerais e nem o Comitê do Grupo podem emitir diretrizes e fazê-las cumprir e, menos ainda, punir.

Mas há um fato sempre observado ao longo de muitos anos e que não pode ser desconsiderado: é o de que se cada membro de A.A. não puder, da melhor maneira que puder, seguir os 12 Passos sugeridos para a recuperarão, ele estará quase assinando a sua própria sentença de morte.

Embriaguez e desintegração não são penalidades impostas por nenhuma autoridade; são a conseqüência da não obediência aos princípios espirituais.

O mesmo ocorre com os grupos em relação as Doze Tradições – os grupos que se afastam das Tradições podem se desestruturar e acabar. Por isso, geralmente obedecem a princípios espirituais.

Cada membro de A.A. busca a própria sobriedade e os serviços procuram colocar a sobriedade ao alcance de todos que a queiram. O A.A. é uma sociedade sem organização, mas animada pelo espírito de serviço.

10ª TRADIÇÃO

“Alcoólicos Anônimos não opina sobre questões alheias à Irmandade; portanto, o nome de A.A. jamais deverá aparecer em controvérsias publicas”.

O resultado prático desta Tradição é que a Irmandade nunca foi dividida por polêmica de maior importância. Não se ouvem discussões sobre religião, política, reformas, etc. Não se discutem esses assuntos em A.A. e esse comportamento acabou se tornando uma forma de agir dos membros de A.A. tanto enquanto convivendo nos grupos de A.A. como quando fora deles. Sem dúvida, os membros são capazes de discutir, mas em momento certo, quando necessário e da maneira adequada e não por instinto de luta, pois que a luta resulta em destruição. Assim, as pessoas em A.A. se tornam mais amenas. Além do mais, as nossas diferenças religiosas, políticas, sociais, etc se tornam imperceptíveis diante do que se tem em comum, que é o problema do alcoolismo. Há até um dito muito interessante para quem ainda não vive esta realidade: você pensa que é diferente.

Em A.A. há um clima espiritual e os seus membros se tornam mais pacíficos, fazendo parte de uma grande e feliz família. Existem os velhos resmungões e os “fariseus” mal humorados, mas isso não muda o clima, além do fato de que eles são úteis para fazer crescer a tolerância em todos os membros, o que os prepara para trabalhar e viver juntos, em harmonia.

O A.A. não entra em controvérsia pública pois, assim, haveria sempre prejuízos para a Irmandade sem se pudesse avaliar as suas conseqüências. Os membros de A.A. têm o entendimento de que a sobrevivência de A.A. e a sua expansão são mais importantes de qualquer outra causa.

11ª TRADIÇÃO

“Nossas relações com o público baseiam-se na atração em vez de promoção; cabe-nos sempre preservar o anonimato pessoal na imprensa, no rádio e em filmes”.

O A.A. cresceu muito e, em grande parte, este crescimento se deve a uma legião de pessoas de boa vontade e amigas da Irmandade que, ao longo da sua existência, têm divulgado o A.A.. Uma boa parte desta divulgação é feita pelos escritórios de serviços aos quais são dirigidas solicitações de esclarecimento e ajuda, sendo que essas solicitações são feitas não só por alcoólicos e seus familiares, mas também por profissionais de saúde, por religiosos, por profissionais da mídia, etc.

Assim foi desde o início da existência da Irmandade, e isso levou ao desenvolvimento de uma política de relações públicas. Com o tempo e como resultado de erros e acertos, foi adotado o princípio da atração em vez da promoção. O resultado desta atitude foi muito interessante pois, ao contrário do que podia parecer, resultou em mais publicidade favorável ao A.A..

A Irmandade tinha que ser divulgada de alguma forma e os seus membros decidiram que isso deveria ser deixado para os seus amigos, que têm feito este trabalho surpreendentemente bem. É verdade que os profissionais da mídia freqüentemente se mostraram frustrados diante da insistência dos membros de A.A. em manter o anonimato. Custaram a entender essa posição, mas hoje compreendem o valor desta atitude. Desejava-se divulgar a entidade, mas não os seus membros, individualmente, e dessa posição resultou que os citados profissionais acabaram ficando satisfeitos e ainda mais amigos da Irmandade, acerca da qual têm falado com um grande entusiasmo.

Essa nova atitude é também o resultado de numerosas correspondências enviadas pelos Escritórios de Serviços em que explicam aos profissionais a política de relações públicas de A.A.

Outro fato que é preciso destacar é o de que a 11ª Tradição é mais do que uma política de relações públicas, pois que também se constitui num lembrete permanente de que a ambição pessoal não tem lugar em A.A. e que está nela implícito que cada membro dever ser guardião ativo da Irmandade em suas relação com o público em geral.

12ª TRADIÇÃO

“O anonimato é o alicerce espiritual das nossas tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades”.

O anonimato é fundamental para a construção de um futuro promissor para a Irmandade. Sendo esquecido, abrir-se-ia a “Caixa de Pandora” e os espíritos do dinheiro, do poder e do prestígio estariam soltos e esses gênios malignos poderiam arruinar a Irmandade. Por isso, entender e aplicar o conteúdo desta tradição é fundamental. Ela é a chave da sobrevivência.

Na mitologia grega, Pandora foi a primeira mulher a habitar a Terra. Tinha todos os atributos de beleza e bondade e foi dada a Epimeteu, irmão de Prometeu, que o havia advertido para nada aceitar do deus Zeus, pois este desejava contrabalançar a bênção do fogo que havia sido roubado dos deuses por Prometeu. Os deuses deram presentes a Pandora e, entre eles, estava uma caixa que nunca poderia ser aberta. Mas a curiosidade de Pandora prevaleceu e ela acabou abrindo a misteriosa caixa e delas saíram numerosas pragas para o corpo e tristezas para a mente. Apavorada, ela fechou a caixa, mas dentro dela ficou apenas a esperança, a única coisa boa que a caixa continha. A esperança permaneceu para conforto da humanidade nas suas desgraças.

Para manter o anonimato, é preciso fazer um sacrifício, pois temos que esquecer os anseios pessoais em favor do bem comum, que é o fundamento das Doze Tradições. Elas nasceram dos temores e resultaram em confiança em relação ao futuro. Para crescer e também alcançar os alcoólicos que ainda sofrem, a Irmandade não podia ser secreta, mas também não podia ser transformada em espetáculo de circo. Por outro lado, o ambiente do grupo tinha que ser seguro e a intimidade e as experiências pessoais relatadas nos depoimentos tinham que ser protegidas.

No início, os grupos queriam alcançar imediatamente tantos alcoólicos quanto fosse possível e uma boa maneira encontrada foi a realização de reuniões abertas aos amigos interessados e ao público de modo que pudessem constatar o que era a Irmandade. Seguiram-se os pedidos para realização de palestra em que a referencia a nomes completos e a fotos eram evitadas. Isso resultou numa onda de aprovação por parte do grande público. A solução era o anonimato.

O anonimato é a verdadeira humildade em ação e é a qualidade espiritual que está presente no modo de atração da Irmandade.

É interessante observar que aquilo que é secreto, o é por força de regulamento, enquanto que a característica do que é anônimo é a espontaneidade. No secreto há a exclusividade que leva à vaidade enquanto que no anonimato está a opção que resulta da humildade. A importância desta distinção que cria um modo de agir na vida está ligada ao Décimo-Segundo Passo que fala da prática destes princípios em todas as nossas atividades. Aponta para um comportamento anônimo, para um modo de vida muito especial.

O anonimato tem sido enfocado do ponto de vista de se preservar o caráter confidencial do que é ouvido, para manter para si o conteúdo dos desabafos, para não comentar depoimentos, para não mascarar fofocas por trás de aparente ajuda.

Muito tem sido dito acerca dos prós e contras da abertura do anonimato para a família, para os profissionais de saúde, para os companheiros de trabalho etc, mas um outro aspecto muito importante é o que se refere ao comportamento, ao modo de ser e de viver do alcoólico em recuperação. Aí se chega à frase bíblica: “que a tua mão esquerda não saiba o que a direita faz” que traduz, sobretudo, num novo modo de viver.

Isso é muito importante porque é freqüente ouvirmos coisas que debaixo de uma aparência inofensiva, revelam um comportamento pouco humilde. Em aniversários se ouve falar: “eu estava aqui quando você chegou”. Isso pode significar que “lembro do dia em que você chegou”, mas também que “eu já estava aqui, antes de você”. De um modo ou de outro, muitos buscam se diferenciar por declarações ou atitudes. Sair de um anonimato completo. A vaidade, freqüentemente, escorrega por debaixo dos panos.

Tudo que se venha a acrescentar ao “meu nome é x e eu sou um alcoólatra em recuperação” traduz a intenção de ser diferente, de sair do anonimato, de dar vazão à vaidade. Qualquer detalhe a mais que se acrescente em relação à vida particular de cada um foge do que é importante, que é manter a unidade, foco principal das tradições e se afasta do único ponto de identidade que os alcoólicos têm entre si, que é o alcoolismo. É a identidade que os une. O que cada um é mais do que isso não contribui para a unidade. O que se acrescenta faz do depoente um alcoólatra não igual aos outros e representa um afastamento do comportamento de anônimo. Também relatar o quanto têm feito, quantos afilhados têm, que encargos foram desempenhados ou quantos grupos criaram traduz um desejo de reconhecimento por ter sido mais e, portanto diferente dos outros. O anonimato aponta para um programa de vida em si, enquanto que, buscá-lo é uma tarefa para toda a vida.