Nas arquibancadas do estádio do Maracanã existem balcões onde se vende cerveja durante os jogos de futebol. Reparem como lá ficam pessoas bebendo o tempo todo, de costas para o campo. Para assistir ao jogo, bastaria virar o corpo – mas não o fazem. Talvez não gostem de futebol? No entanto, afirmam categoricamente ser torcedores ardorosos de um dos times e não perderiam uma partida por nada deste mundo.
Vejamos outra cena, um dia de verão, na praia: muita gente passa o dia todo bebendo, debaixo de barracas quentíssimas, sem pegar sol ou cair na água. Apesar disso, dizem adorar uma praia, a ponto de frequentá-la todo fim de semana.
Estas situações refletem o mais constante sintoma da doença alcoolismo – a negação – e podem até ter algo de engraçado, mas constituem verdadeira tragédia para o alcoólico, que freqüentemente morre negando sua enfermidade.
A experiência mostra só se recuperar aquele que for capaz de ultrapassar esta formidável barreira, ao conseguir admitir-se impotente frente ao álcool.
Ao negar sua perda de controle, o alcoólico não é mentiroso, pelo menos conscientemente, mesmo porque esta perda acontece de forma lenta e progressiva. No inicio, ainda há algum controle, com ele bebendo só nos fins de semana ou após certas horas do dia. Aos poucos, o doente vai, porém, criando um manto de fantasia, que o faz ser o primeiro a acreditar não ter problemas com álcool.
Trata-se de um mecanismo psíquico de proteção, para enfrentar a dura realidade de estar tendo comportamentos irresponsáveis.
Paradoxalmente, não consegue viver sem a bebida, mesmo reconhecendo ser, em certas ocasiões, o consumo exagerado. A explicação, para ele, está nos sérios problemas que vem enfrentando no momento; se os problemas desaparecessem, voltaria a beber controladamente.
Assim, enquanto aguarda o milagre, vai bebendo cada vez mais.
Este mecanismo de negação, que se desenvolve dentro da personalidade do individuo, não se limita apenas à afirmativa, para si e para os outros, de que não é alcoólico. È necessário também inventar uma série de desculpas, para manter uma aparente lógica nas coisas que se anda fazendo.
Este manto de fantasia, fabricado por ele mesmo, fica cada vez mais duro, mais resistente, até isolar o doente do mundo real, como se fosse uma larva do bicho-de-seda envolvida no casulo.
É claro que as coisas continuam existindo como são, o emprego, a família, os amigos, mas tudo isso torna-se a cada dia menos importante. Os mais íntimos questionam: “Por que ele faz isso conosco? Será que não gosta mais da gente?” Ou afirmam: “Se você me amasse, parava de beber!” São questões que incomodam, despertam sentimentos de remorso, culpa e autopiedade, mas não sabe resolver, por julgar impossível separar-se do companheiro álcool. Então ele nega os fatos, inventa justificativas, faz promessas as quais não consegue cumprir, tudo o que for possível para se fechar cada vez mais dentro de um outro mundo, só existente no seu delírio – mas que é só seu, seu mundo de negação.
Para conviver melhor com sua fantasia, o alcoólico passa a só frequentar lugares onde haja bastante bebida e selecionar amizades entre gente que também bebe. Se for convidado para um aniversário de criança, sabendo que só vai encontrar bolo de chocolate e coca-cola, recusa, dizendo não ter paciência para aguentar este tipo de festa. Mas é capaz de pegar 3 ônibus para ir a um churrasco na casa de um desconhecido. Pensa em álcool todas as horas do dia: quando será que vou poder tomar a primeira? A que horas o bar do hotel fecha? Não esquecer, os supermercados fecham aos domingos! Lá no sítio vai ter bebida? È melhor garantir, levando uma garrafa na mala!
Para melhor entender o processo, substituamos a palavra “álcool” por “azeitonas”. Quando será que vou comer a primeira azeitona hoje? Será que lá no sitio há azeitonas? É melhor garantir: levo umas latas na mala! Fica bastante estranho: qualquer pessoa que só pensasse em azeitonas seria identificada como portadora de um problema psíquico. Mas o dependente químico do álcool continua afirmando ser normal seu comportamento.
Na tarefa de continuar negando seu alcoolismo, o alcoólico tem também de aprender a ser esperto, desenvolvendo a habilidade de esconder o quanto anda bebendo. Muitas vezes pára de beber dentro de casa, mas a toda hora tem de sair para comprar cigarros. Na rua, frequenta muitos botequins, evitando tomar mais que duas ou três doses no mesmo lugar, para não ser identificado como beberrão. Às vezes começa a beber em um bairro, termina em outro. Bebe no bar, antes da festa, para dar a impressão de estar bebendo pouco. Escolhe vodca, porque ouviu dizer que não dá cheiro. Anda sempre com balas e pastilhas de hortelã, para disfarçar o hálito. Enfim, esconder seu alcoolismo dos outros passa a ser procedimento de rotina, a ocupar boa parte da sua atenção.
Já para provar a si mesmo não ser alcoólico, os mecanismos de negação são outros:
• 1. Tenta beber menos quantidade, embora com a mesma freqüência.
• 2. Tenta beber com menos freqüência, embora a mesma quantidade.
• 3. Tenta não beber durante a semana de trabalho, mas fica contando os dias e horas que faltam para a sexta-feira chegar.
• 4. Tenta usar outras drogas para diminuir a quantidade de bebida, tomando tranquilizantes de manhã, para parar de tremer, ou anfetaminas de noite, para poder dirigir o carro.
• 5. Muda a marca ou tipo de bebida, assumindo que a anterior é que lhe fazia mal. Ilude-se trocando um litro diário de cachaça, por 5 litros de cerveja, achando que assim bebe menos álcool. Sendo rico, substitui uísque nacional, por outro importado.
• 6. Fica temporariamente em abstinência, por exemplo, quando internado, para desintoxicar, quando obrigado a tomar antibióticos ou apenas “para dar um tempo”, depois de uma consulta médica preocupante. Estes períodos de abstinência têm data marcada para acabar e seu fim é ansiosamente esperado. Quando terminam, o alcoólico acha que depois de tanto sacrifício agora ele merece tomar “uma só” e tudo começa de novo, detonado pelas poderosas forças da dependência química.
Os períodos de abstinência servem para afirmar e reforça cada vez mais a negação, embora só sejam conseguidos à custa de intenso sofrimento emocional. O objetivo é provar a si mesmo e aos outros não ser alcoólico, que domina perfeitamente a situação e pára de beber quando quer. As frases clássicas são: “Na verdade, eu não preciso beber, acontece que eu realmente gosto de álcool”. Ou então: “Se você tivesse em sua vida os problemas que tenho, iria beber ainda mais do que eu”.
À medida que a doença progride, mais este manto de fantasia impede o doente de ver sua realidade. Ele muda de comportamento e atitudes, perde seus valores, cada vez mais enredado na teia da dependência. Basta ler o Livro Azul de Alcoólicos Anônimos, para ver como duas emoções básicas, orgulho e medo, tão saudáveis quando baseadas em fatos reais, podem tornar-se exasperadas e delirantes, originando as mais variadas turbulências de raiva, inveja, ciúme e ódio.
O alcoólico age ao sabor da primeira emoção descontrolada que lhe vem a cabeça e, quando as coisas não dão certo, bota a culpa nos outros ou nas situações de vida. Expectativas fantasiosas tornam-se regra e, como não se realizam, trazem frustrações, autopiedade e necessidade ainda maior de bebida.
Neste ponto, o manto da fantasia confunde-se com a carapuça da negação, dura, resistente, impenetrável pelo lado de fora, como o casulo. Porem, lá dentro, o bicho-da-seda pode encontrar forças para rompê-lo e, ao livrar-se, sair da escuridão para a luz.
Como o alcoólatra, que, vencendo a negação ao reconhecer sua impotência frente ao álcool, encontra o caminho da recuperação e da vida.
E de repente descobre que não gosta tanto assim de praia, nem de frequentar o estádio do Maracanã…
Dr. Alberto Duringer
Médico no Rio de Janeiro, Conselheiro no Conselho Estadual de Entorpecentes.
Vivência n° 19 – Janeiro/Março 1992
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