Dr. Lais Marques da Silva, ex-Custódio e EX-PRESIDENTE da JUNAAB.
Os depoimentos são uma constante entre os membros da Irmandade de Alcoólicos Anônimos. Poder-se-ia até dizer que são um traço dessa verdadeira comunidade que é integrada por todos os membros de AA do mundo, hoje em torno de dois milhões de pessoas.
Os depoimentos têm o seu lado fascinante porque eles são verdadeiros presentes que oferecemos aos nossos irmãos, ou seja, às pessoas ligadas entre si por experiências comuns e por um nível elevado de compreensão. Eles são o que de melhor podemos oferecer; experiências das nossas vidas, a nossa vivência, algo que é o resultado das nossas visões, dos nossos entendimentos diante dos fatos e das lutas que se sucedem ao longo da nossa existência. E, do outro lado, estão as pessoas que recebem a nossa doação e que se encontram envolvidas por uma atmosfera densa e enriquecida pelo senso de compreensão, de amor ao próximo e com um perfeito entendimento de serem irmãos, atmosfera essa que facilita a comunicação tornando possível uma posição aberta de quem faz o depoimento e criando as condições necessárias para quem os ouvem possam assimilar integralmente o conteúdo do que esta sendo transmitido. Ou seja, desenvolve-se um clima de empatia indispensável às trocas das riquezas interiores.
Aqui venho hoje também para oferecer as minhas experiências, o meu depoimento, como médico e como amigo de AA e, sobretudo, o meu entendimento de tudo o que vi, ouvi e vivi ao longo dos contatos que tive com os companheiros de AA e com o modo de viver nos grupos e dos grupos entre si.
Em meados de 1973, fui procurado por um amigo e companheiro de trabalho que me perguntou se eu conhecia o AA. Naquele tempo, o AA não só tinha membros anônimos, mas era, como instituição, quase secreta. Eu respondi que já tinha ouvido falar acerca de Alcoólicos Anônimos, mas não sabia exatamente o que era. Ele, mais tarde fiquei sabendo que era membro de AA, me perguntou se eu encaminharia ao AA os meus pacientes com problemas de alcoolismo. Àquela altura, eu já tinha um longo período de prática médica e toda a minha experiência mostrava apenas os sucessivos insucessos das minhas tentativas em tratar destes pacientes. Como clínico, eu vinha usando os meios terapêuticos procurando, na medida imposta por cada caso, recuperar o organismo e dar apoio emocional e encorajamento àqueles pacientes e a seus familiares. Diante das sucessivas recaídas que se seguiam a breves períodos de sobriedade, passei a recorrer a outros profissionais da área de saúde de modo a tornar mais abrangente os cuidados oferecidos a esses pacientes. Encaminhei-os, após tratamento clínico, a assistentes sociais e a psicólogos. Não obstante, as frustrações se sucederam e eu só me sentia menos mal porque as experiências dos outros colegas eram igualmente mal sucedidas e frustrantes.
Voltando à pergunta do companheiro de trabalho e membro de AA, disse a ele que não conhecia a Irmandade de Alcoólicos Anônimos, mas que ia conhece-la pelos frutos que ela iria dar e lembrei a ele que “a boa arvore não dá maus frutos e a má arvore não dá bons frutos” e que pelos frutos eu ia avaliar a irmandade da qual ele estava falando. Possuindo mente aberta, o sentimento de compaixão diante do intenso sofrimento daqueles pacientes e dos seus familiares apagava qualquer traço de presunção, arrogância ou prepotência que eu poderia ter.
Assim, procurei criar condições que facilitassem a ida destes pacientes para a cidade mais próxima onde pudessem assistir a reuniões de AA e que ficava a mais de 100 quilômetros de distância. Iam à tardinha e no dia seguinte estavam de volta, guiados pelo companheiro. Para meu alivio, eles regressavam sem problemas e isso era realmente um grande alívio porque o comportamento daquela gente, até então, era completamente imprevisível. Como tudo ia bem e tendo eu uma vida de trabalho muito intensa, me desliguei até que, cerca de seis meses depois, resolvi verificar como as coisas estavam e aí, para minha grande surpresa e alegria, constatei que todos estavam bem e que nunca mais tinham ingerido qualquer bebida alcóolica. Este era um fato inteiramente novo para mim e com características de milagre, e que estava acontecendo bem debaixo do meu nariz. Algo quase que inacreditável.
Mais tarde, o amigo e companheiro me procurou para solicitar a minha ajuda para que criássemos um grupo na cidade em que vivíamos, São Pedro da Aldeia, e que viria a ser o primeiro grupo da Região dos Lagos. Como de hábito, embora eu naquele tempo não soubesse, recorremos ao padre da cidade para solicitar o uso do salão da paróquia. Como é usual em circunstâncias como esta, contamos com a sua boa vontade e o grupo passou a funcionar naquelas instalações e lá eu ia fazer palestras aos domingos, em reuniões abertas.
A partir dessa ocasião, eu não só conhecia a doença e os doentes, mas conhecia um grupo de AA e esta foi uma nova e enriquecedora experiência que teve e terá sempre uma forte influência na minha vida, influência essa que se estenderá até os meus últimos dias.
Diante da surpreendente recuperação física, familiar e social dos meus pacientes, passei a ter um sentimento de respeito e de admiração pela Irmandade de Alcoólicos Anônimos e, depois, de curiosidade. Como eles conseguiam aquilo que parecia ser quase que impossível. Por outro lado, surpreendentemente, os grupos eram despojados de tudo que não fosse essencial ao seu funcionamento. Não havia rituais, a liberdade de cada membro era respeitada ao máximo não existindo gurus ou mentores espirituais, dogmas, códigos disciplinares e nenhuma hierarquia. Não havia um esquema de poder e nem riqueza material.
Apesar de em AA ser tudo tão diferente do resto do mundo, soube depois que, naquele tempo, que havia mais de mil grupos no Brasil e que o AA estava em quase cem países do mundo.
Ainda não refeito do choque inicial causado pela surpreendente recuperação dos pacientes, tive outras surpresas, não menos chocantes ao verificar a simplicidade e a pobreza como opção feita pelos grupos e a ausência de uma estrutura de poder. Em realidade, essa era uma instituição inteiramente diferente de tudo o que eu conhecia e com característica absolutamente sui generis.
Tocado por todas essas realidades, por esse mundo novo e diferente passei a ter pela instituição não só uma grande admiração e respeito, mas também passei a desenvolver um sentimento de compromisso com a instituição e de amizade em relação aos seus membros.
Relatei as inesperadas e inacreditáveis surpresas, os fatos inteiramente novos e desconcertantes e pode parecer que, diante da intensidade das emoções dos primeiros tempos, as coisas tenham ficado dentro de uma rotina. Mas não foi assim. Ao longo desses 26 anos de convivência, não paro de observar nova riquezas, novos mecanismos de recuperação, o como os seus membros vão chegando a um nível mais profundo de consciência, o modo pelo qual o sentimento de amor ao próximo vai se desenvolvendo. Até hoje continuo sendo surpreendido pela observação de novas e brilhantes características como se observasse uma sucessão infinita de luzes projetadas por um sem número de facetas de um gigantesco diamante, por uma poderosa fonte de luz. A Irmandade de Alcoólicos Anônimos é um mundo diferente em que identificamos constantemente uma sucessão de boas coisas, de agradáveis surpresas. É um mundo de alegria e de otimismo. É um mundo de amigos e de irmãos vitoriosos. É uma comunidade verdadeira inspirada pelo Poder Superior.
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