Grupo Base: Revista Vivência – Edição 175

VOA, GAIVOTA!

Com olhos de primeira vez, alguém que conheceu inúmeros grupos descreve-nos seu encanto por passar a fazer parte de um grupo tão diferente, instigante e enraizado na simplicidade de A.A.

Ingressei em A.A. num grande grupo da capital de São Paulo. Logo no meu começo conheci muitos grupos, por meio das chamadas reuniões de unidade. De fato, percorri quase todos os grupos da capital, além de outros no litoral, quando estava de férias.

Notei que, geralmente, a autonomia desses grupos revelava-se em detalhes: a divisão dos tempos da reunião, a leitura do Preâmbulo, o tempo individual de partilha, a palavra aberta ou dirigida, as cadeira enfileiradas ou em círculo, o modo de tratar o ingresso de novos membros, a Oração da Serenidade no plural ou no singular, com os membros em pé ou sentados. Notei também que havia grupos cheios, esvaziados, mais e menos acolhedores. Mas todos os grupos que conheci, sem exceção, seguiam certos rituais rígidos e fixos.

Nos meus quase oito anos de sobriedade, eu achava que já havia visto de tudo, em matéria de grupos de A.A. Porém, no ano passado mudei-me para uma simpática e pequena cidade do interior paulista, com 70 mil habitantes. Logo comecei a frequentar as reuniões do único grupo local e levei um susto enorme.

Era o grupo mais desorganizado que eu tinha visto – foi esta a palavra que me ocorreu então. As reuniões nunca começam no horário, sempre há atrasos – de oito a dez minutos, não mais – tanto no início quanto no término. Não existe muito rigor na leitura do Preâmbulo. Há retorno de partilhas, por parte de membros ou do coordenador da reunião. O que mais me espantava é que essas réplicas são naturais, espontâneas, cordiais. Ninguém fica ofendido ou zangado, pois opera, antes de tudo, a linguagem do coração, a empatia. O tempo de depoimento é flexível: se alguém estiver precisando falar, ou se os presentes estiverem fortemente ligados num depoimento, o coordenador deixa o tempo correr por mais alguns minutos.

Conversando com os veteranos, percebi que essas coisas não são fruto do acaso – nem de descaso. Ao contrário, todos estão atentos para que o grupo não se torne rígido, cheio de normas, regras e ritos. Os mais velhos estão sempre atentos para manter o espírito de amizade, bem-estar, alegria e união, que levaram anos para construir. Muitas vezes, em especial quando não há novatos na sala, as risadas correm soltas, voltamos para casa exaustos de alegria. Vira e mexe, fazemos pizzas e encontramos-nos fora do grupo. As viagens de unidade nos grupos das cidades vizinhas são concorridas e alegres.

O grupo nasceu assim, há 23 anos. Um dos cofundadores, muito querido por todos, frequentou reuniões em São Paulo no início da sua recuperação, e sentia que os grupos da capital eram demasiado sérios. Quando, junto com outros companheiro, abriu o grupo no interior, ambos concordaram que as reuniões seriam mais informais. Instituíram o costume de, no início da reunião, todos se apresentarem pelo primeiro nome, para que todos se cumprimentem e saibam os nomes uns dos outros.

Atualmente temos três reuniões semanais, com frequência média de quinze a vinte pessoas. Apesar da informalidade nas reuniões o grupo é atuante, pratica com afinco os princípios de A.A. Fazemos reuniões de depoimentos, estudo de literatura e serviço. Temos um comitê completo de servidores, com titulares e suplentes. Participamos do distrito local. Incentivamos o apadrinhamento pessoal e no serviço, no qual a rotatividade é estimulada na prática, para evitar apegos.

Nesse ano estou servindo como coordenador do CTO no grupo e como secretários no distrito. Apadrinhamos a criação de novo grupo numa cidade vizinha, assim, estamos sempre lá, em unidade para aumentar a frequência. Temos ótimo relacionamento com os demais grupos do entorno.

Fazemos CTO numa clínica e no albergue local. Trabalhamos em conjunto com o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade. Regularmente encaminhamos textos e relatos que são publicados no principal jornal impresso e transmitidos na principal rádio da cidade. Temos um site do grupo e uma página no Facebook.

Pelo endereço do site, vê-se logo o nome do nosso grupo. Por quê gaivota? Por que essa espécie de ave tem um elevado instinto de companheirismo. Quando voam grandes distâncias, elas assumem uma formação em “V”, apoiando-se na confiança, solidariedade e estimulo mútuos. Com isso, chegam ao seu destino mais depressa, com maior facilidade e segurança do que se voassem sozinhas.

Hoje entendo as razões do meu novo grupo base manter-se simples, flexível e alegre. Considero-o mais interessante dentre muitos grupos de A.A. que conheci. Nele vivencio a essência do que acredito que Bill quis dizer quando usou a expressão “anarquia benigna” para definir nossa Irmandade. Sem nenhum trocadilho com o nome da cidade, sinto-me mais amparado – e mais feliz – ao servir e fazer minha recuperação nesse grupo.

Fonte: Revista Vivência – Edição 175 – Setembro / Outubro – 2018 – Paginas: 24 – 25